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CAPÍTULO DEZ – REVELAÇÃO

'(...)Meia hora depois, indo abrir o livro para continuar a leitura, viu Guiomar a cartinha de Jorge. Não tinha sobrecarta; era um simples papelinho dobrado, recendendo amores. O espírito de Guiomar estava tão longe daquilo que não suspeitou de nada e distraidamente o abriu. A primeira palavra escrita era o seu nome; a última era de Jorge.

O primeiro gesto de Guiomar foi de cólera.Se ele pudesse espreita-la pelo buraco da fechadura, e ver-lhe a expressão do rosto, é mui provável que se lhe convertesse em aborrecimento todo o amor que até agora nutria. Mas ele não estava ali, a moça podia traduzir fielmente no rosto os movimentos do coração.

- Mais um, pensou ela; este porém....

E desta vez o gesto não foi de cólera, foi de alguma coisa mais, metade fastio, metade lástima, mescla difícil e rara.

A moça ficou algum tempo quieta, a olhar para o papel, sem o querer ler, como a hesitar entre queimá-lo ou restituí-lo intacto ao seu autor. Mas a curiosidade venceu por fim; Guiomar abriu o papel e leu estas linhas:

“GUIOMAR! Perdoe-me se lhe chamo assim; as convenções sociais condenam-me decerto, mais o coração apavora, que digo?ele mesmo escreve essas letras. Não é minha pena, não são os meus lábios que lhe falam deste modo, são todas as forças vivas da minha existência, que em voz alta proclamam o imenso e profundo amor que lhe tenho.

Antes de ler este papel, já a senhora o há de ter visto, pelo menos adivinhado em meus olhos, na doce embriaguez que em mim produz a presença dos seus. Persuado-me de que todo o meu esforço em recalcar este afeto é em vão; por mais que eu sinceramente deseje esquecê-la, não o alcançarei nunca; não alcançarei mais que uma aflição nova. O remorso de o tentar virá coroar os demais infortúnios.

Por que esta razão rompo hoje o silêncio em que me tenho conservado, medroso e respeitoso silêncio que, se não me abre o caminho da glória, ponder-lhe; falo, porque uma força interior me manda falar, como transborda o rio, como se derrama a luz; falo porque morreria talvez se me calasse, do mesmo modo que morrerei de desespero, se além do perdão que lhe peço, me não der uma esperança mais segura do que esta que me faz viver e consumir.- Jorge”

Guiomar leu esta carta duas vezes, uma leitura de curiosidade, outra de análise e reflexão, e ao cabo da segunda achava-se tão fria como antes da primeira. Olhou algum tempo para o papel e mentalmente para o homem que o havia escrito; enfim, pôs a carta de lado, abriu o livro e continuou o romance.

Mas o espírito não ficara tão indiferente como o coração, entrou a fugir-lhe do romance para a vida, com tal tenacidade que não houve remédio senão irem os olhos atrás dele, e a moça de novo mergulhou nas reflexões que lhe sugeria o caso da paixão de Jorge.(...)'

Assis, Machado de. "A mão e a luva". 14ª ed. São Paulo: Ática, 1997. p.53 e 54.

[a ortografia deste texto encontra-se atualizada com o sistema ortográfico vigente, que foi estabelecido pelo acordo de 1943 e sofreu alterações da lei nº 5 765, de 1971. Os erros tiptográficos evidentes foram corrijidos.]

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