CAPÍTULO CXCIX
Foi a comadre do Rubião, que o agasalhou e mais ao cachorro, vendo-os
passar defronte da porta. Rubião conheceu-a, aceitou o abrigo e o almoço.
— Mas que é isso, seu compadre? Como foi que chegou assim? Sua roupa
está toda molhada. Vou dar-lhe umas calças de meu sobrinho.
Rubião tinha febre. Comeu pouco e sem vontade. A comadre pediu-lhe contas
da vida que passara na Corte, ao que ele respondeu que levaria muito tempo, e só a
posteridade a acabaria. Os sobrinhos de seu sobrinho, concluiu ele magnificamente,
que hão de ver-me em toda a minha glória. Começou, porém, um resumo. No fim de
dez minutos, a comadre não entendia nada, tão desconcertados eram os fatos e os
conceitos; mais cinco minutos, entrou a sentir medo. Quando os minutos chegaram
a vinte, pediu licença e foi a uma vizinha dizer que Rubião parecia ter virado o juízo.
Voltou com ela e um irmão, que se demorou pouco tempo e saiu a espalhar a nova.
Vieram vindo outras pessoas, às duas e às quatro, e, antes de uma hora, muita
gente espiava da rua.
— Ao vencedor, as batatas! -- bradava Rubião aos curiosos. Aqui estou
imperador! Ao vencedor, as batatas!
Esta palavra obscura e incompleta era repetida na rua, examinada, sem que
lhe dessem com o sentido. Alguns antigos desafetos do Rubião iam entrando, sem
cerimônia, para gozá-lo melhor; e diziam à comadre que não lhe convinha ficar com
um doudo em casa, era perigoso; devia mandá-lo para a cadeia, até que a
autoridade o remetesse para outra parte. Pessoa mais compassiva lembrou a
conveniência de chamar o doutor.
— Doutor para quê? acudiu um dos primeiros. Este homem está maluco.
— Talvez seja delírio de febre; já viu como está quente?
Angélica, animada por tantas pessoas, tomou-lhe o pulso, e achou-o febril.
Mandou vir o médico, — o mesmo que tratara o finado Quincas Borba. Rubião
conheceu-o também; e respondeu-lhe que não era nada. Capturara o rei da Prússia,
não sabendo ainda se o mandaria fuzilar ou não; era certo, porém, que exigiria uma
indenização pecuniária enorme, - cinco biliões de francos.
— Ao vencedor, as batatas! concluiu rindo.
CAPÍTULO CC
Poucos dias depois morreu... Não morreu súbdito nem vencido. Antes de
principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça, — uma coroa que não era,
ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a
ilusão. Não, senhor; ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a
insígnia imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas. O
esforço que fizera para erguer meio corpo não durou muito; o corpo caiu outra vez; o
rosto conservou porventura uma expressão gloriosa.
— Guardem a minha coroa, murmurou. Ao vencedor...
A cara ficou séria, porque a morte é séria; dous minutos de agonia um trejeito
horrível, e estava assinada a abdicação.
CAPÍTULO CCI
Queria dizer aqui o fim do Quincas Borba, que adoeceu também, ganiu
infinitamente, fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu morto na rua, três
dias depois. Mas, vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é provável
que me perguntes se ele, se o seu defunto homônimo é que dá o título ao livro, e por
que antes um que outro, — questão prenhe de questões, que nos levariam longe...
Eia! chora os dous recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso ri-te! E a
mesma cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar como lhe pedia Rubião,
está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.
ASSIS, Machado de. Quincas Borba.
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